Entrei na sala reservada à visitação e lá estava a pequena Aurora, sentada descuidadamente em suas fantasias e bugigangas – típicas de uma infância modesta, derradeiramente solitária e desgarrada dos recursos do universo tech.
Sem que me percebesse presente e a observá-la brincando, ali permaneceu entretida com uma espécie de baú aparentemente trancado a chave.
Uma das questões mais delicadas a que me debruço, quando no atendimento de crianças e seus respectivos cuidadores, permanece no âmbito de um meio de caminho em que o entendimento sobre o amar se arvoraria: incondicionalidade ou imprescindibilidade do limite?
A controvérsia se abre diante de construtos e experiências, no delicado espaço de interação entre as realidades objetiva e subjetiva, e por onde se situa o embate sobre o social e o singular, sobre o humano e o divino.
Por vezes a dor de uma tragédia alcança um lugar onde a mente, em seu limiar ao sofrimento, permite abster-se, fugir a um canto inalcançável à mínima preservação da própria sanidade.
Na incoerência do processo, a solidão pode trazer pretenso alívio ao insuportável do real.
Escrevo agora sobre o que vingou de um bate-papo informal com amigos de profissão. Na inquietude de nossos porões mentais fluem sensações que, aliadas a arquivos indeléveis, pescam no tempo sem tempo do tempo as mais remotas recordações.
Dentre as tantas mencionadas em conversa sobre a seara televisiva (na ciência de que tal adjetivo leva ao mais antigo de mim), uma insistiu em rodear e pernoitar no pensamento, presentificando no lobo (a)temporal que me habita, e na plenitude do duplo sentido, muitas veredas... umas delas, a da faceta da ingenuidade.
Nas tantas andanças pelos campos da prática clínica, seguimos colhendo enredos distintos e repletos de vivências desafiadoras que, ao aportarem no consultório, exigem extremo cuidado de quem se disponibiliza à escuta. Requisitam ainda maior zelo ao chegar por intermédio de vozes maternas exaustas, cada qual em visível desorientação ante a angustiada procura por saídas ou qualquer lenitivo ao desamparo em que se acham.
Mães que adentram geralmente sozinhas a sala em que seus prantos não mais suportarão o represamento da mágoa em não serem compreendidas nos seus lamentos e em suas dores ante a impotência.
Em atendimento recente, certa paciente apresentou sua dúvida sobre egocentrismo e narcisismo pois, por sua lente, enxergava que significavam uma mesma coisa, caracterizando ambos o erro de uma pessoa pensar apenas em si e de agir só levando em conta seus desejos.
Naquele momento, achei pertinente propor a reflexão sobre o sentimento do orgulho e fiz uso de um recurso clínico bastante proveitoso: a metáfora. Recorri à mitologia grega, precisamente ao Mito de Níobe, aquela que teria sido ao mesmo tempo neta de Zeus (enquanto filha de Tântalo com Dione) e uma das noras dele (por se casar com Anfião, filho de Zeus com Antíope).
Ciente da infinita capacidade em guardar informações fora do campo consciente – onde nossas memórias brincam e adormecem –, deixo vir à mente um enredo de recorrente retorno, em especial na clínica, quando submeto-me a temas angustiantes: perda, abandono, mágoa, trauma e somatizações. Nesse meu lembrar, a reminiscência costuma recuperar trechos e lições do livro O Jardim Secreto, clássico da literatura infanto-juvenil, datado de 1911 e escrito por Frances Hodgson Burnett.
Pioneira em evidenciar crianças como protagonistas, o texto retrata a orfandade precoce de uma menina de dez anos, Mary, e seu primo de mesma idade, Colin, e como elas lidam, cada qual do seu jeito, com a dor de se verem sozinhas, ainda que não formalmente abandonadas.
É comum a aparição, no consultório, de questões vinculadas a estados de angústia permeados por sensações de insegurança diante de objetos, sejam eles reais ou imaginários – para a psicanálise, objeto se refere a tudo que está fora do sujeito, em seu entorno, como pessoas, coisas e sistemas (profissional, familiar, de ensino, entretenimento etc.).
Tal vulnerabilidade também tende a ocorrer frente a conteúdos de repercussão interna, como doenças ou vivências conflitivas: lutos, traumas, pesadelos/insônias, mágoas, ideações neuróticas, decisões, testes, depressão/ansiedade excedentes, impotências, entre outros.
Norteada pela crença de tempos mais sensíveis, cravo que a violência nunca foi, continua não sendo e jamais se fará, apesar das muitas frestas pelas quais ela possa se embrenhar, o método adequado ao alicerce dos processos de socialização e desenvolvimento educacional do sujeito de desejos.
Sem se ater à origem, toda fonte de agressão requer de todos especial atenção; e, muito mais, daqueles que se debruçam na mureta do cotidiano escolar, em função dos desajustes emocionais e psíquicos verificados em falas e condutas dos diferentes personagens do cenário acadêmico – desajustes em sua maioria nascidos nos quatro cantos da estrutura familiar e a vazarem aos canteiros da quadra escolar.
"Raios e trovões!". Expressão saudosa, essa! Virou bordão a quem igualmente fez morada no fabuloso Castelo da tevê Cultura, nos idos da década de 90. Lá havia um Nino menino que, em seus 300 anos, nunca crescia e de quem vertia tanto a traquinagem e alegria dos ingênuos como, em contrapeso, certa habilidade ao equilíbrio e discernimento. Aprendiz de feitiçarias, seus pais nunca estavam presentes por viverem pelo espaço – como muitos – sem tempo ao interdito ou a acolhidas. Biba, Zeca e Pedro felizmente juntavam-se a ele, tirando-o da solidão às brincadeiras.
Nas torres empoeiradas, a destemperada bruxa Morgana articulava a voz em impropérios e ameaças, reinando plena no Rá-Tim-Bum; emparelhava, nas artimanhas da magia, ao "Salagadula Mexegabula Bibidi-Bobidi-Boo", cantarolado muito antes pela atrapalhada fada de Cinderela. Sob doces melodias, encantos e bruxedos, a infância dos grandes e dos pequenos seguia fortalecida e espontânea, num tempo outrora de muitas risadas, travessuras e diversão.