Platão preconiza uma linha divisória que indica o início da humanização plena: o homem assume sua humanidade quando deixa de olhar para os outros pensando em como eles podem lhe servir e começa a olhar para eles se perguntando como pode lhes servir.
Esse é o caminho para uma convivência pautada em propósitos de ampliação da consciência.
Quase setenta anos, e passou tão depressa!
Até pouco tempo atrás, quando me olhava no espelho, parecia ver o rosto de minha mãe. Isso me confundia. Sentia um certo desconforto, às vezes. Os cabelos brancos me recordavam os caminhos já trilhados, as tantas dores, o desafio contínuo de viver.
Eu havia terminado a exposição com a frase: "O papel do facilitador de um Círculo de Construção de Paz é garantir um espaço seguro para a conexão."
"E como se constrói um espaço seguro?" A pergunta veio rápida e atravessou a sala como o voo rasante de uma águia. Olhei para o jovem educador, surpresa, não com a pergunta, mas com a entonação da voz que denotava urgência.
O segundo semestre veio com força. Vários projetos de trabalho começaram a frutificar. Além disso, é agosto. Nasci em agosto e gosto desse mês. Eu me sinto bem ao imaginar que estou fechando ciclos e celebro com alegria cada vez maior o meu aniversário.
Na semana passada, reiniciei o projeto “Sinto, logo Existo” com as minhas alunas da Fase I, no sistema prisional. Estou trabalhando a identificação e o reconhecimento dos nossos sentimentos e, para isso, tenho utilizado os Círculos de Construção de Paz e oportunizado a elas o acesso a diferentes linguagens.
A volta ao trabalho é também o retorno às reuniões, fila de supermercado e redes sociais. Cada vez mais eu me assusto com os olhos opacos de quem se movimenta com fones de ouvido e o corpo curvado, quando, em um relance, é obrigado a olhar.
Início de semestre. O planejamento de uma sequência didática sobre a linguagem da arte me traz a obra “O Grito”, de Edvard Munch, como elemento de mobilização. Mergulho nas cores fortes e me perco nos traços sinuosos.
Estávamos em grupo: sete mulheres e um homem de idades diferentes. Alguém puxou a ponta do novelo de uma história antiga... E logo carinhas travessas sob o jugo de adultos enrijecidos pelas lutas da vida encheram a sala com seus risos, medos e dores.
As meninas mais novas, ainda imersas nas histórias que estão vivendo, silenciaram. Para elas, o presente ainda em construção é um caleidoscópio gigante.
Vivemos tempos marcados pela violência que tem se naturalizado a cada dia em todas as instâncias sociais. Entretanto, existem brechas que precisam ser ocupadas.
Essas brechas podem ser interpretadas como espaços ainda não tomados, tendo em vista que ainda temos autonomia para fazer certas escolhas. Ainda podemos escolher ser gentis. Ainda não nos proibiram de falar e de nos escutar ou de escutar o outro.
Há momentos que florescem em meio ao cimento armado das construções internas e externas. Momentos simples, pequenos e esparsos miosótis que se esgueiram teimosos mesmo por entre a erva daninha...
Eu fui enredada um desses dias por um desses momentos.
No meio do caminho tinha uma sandália verde... Tinha uma sandália verde no meio do caminho. A cor viva e fluorescente chegou primeiro à minha retina, seguida pela dona da sandália, tão exuberante quanto sua cor.
Eu a admirei imediatamente. Só alguém com vida em abundância escolheria uma sandália daquela cor, pensei comigo.
Diante de mim, a paisagem é um convite...
Abro o caderno e a primeira folha se oferece. Diferentemente das outras vezes em que costumo escrever, começo a escrita movida apenas pelo desejo de registrar o que está vivo em mim, sem saber exatamente onde essa escrita vai me levar.