Corrida para a Prefeitura de Curitiba

Opinião

A solidão do abrigo e a difícil jornada da adoção

O mundo da fantasia trilha caminhos possíveis para as crianças lidarem com sua dor.O mundo da fantasia trilha caminhos possíveis para as crianças lidarem com sua dor.
Bianca Stella
/
Adobe Firefly
Marta Moneo

<span class="abre-texto">Entrei na sala reservada à visitação e lá estava a pequena Aurora,</span> sentada descuidadamente em suas fantasias e bugigangas – típicas de uma infância modesta, derradeiramente solitária e desgarrada dos recursos do universo tech. 

Sem que me percebesse presente e a observá-la brincando, ali permaneceu entretida com uma espécie de baú aparentemente trancado a chave. 

Seus dedos miúdos compunham duas mãozinhas pacientes, a manobrarem o objeto em busca de alguma possibilidade de destravamento. Não sei se naquele processo distraído e ao mesmo tempo concentrado contava ela com a sorte, a persistência ou apenas buscava desenvolver a melhor estratégia. De certo mesmo, é que nada no entorno fazia frente a seu foco e desejo.

Em comum, o metafórico silêncio a nos fazer companhia. 

Esparramados ao chão, colchonetes aliviavam a dureza do piso frio e emprestavam ao ambiente um ar de neutralidade ante o que poderia inspirar mais aconchego e afetuosidade.

Eu estava ciente, contudo, de que essa sensação doía mais em mim do que na pequenina...

Ainda não tendo alcançado o circuito da subjetividade (atuante na tela mental adulta), sobreviventes infantis do abandono alegram-se com o mínimo de atenção e carinho oferecido por quem, sem se dar conta da espera e da esperança naquela visitação depositada, entra e sai dos abrigos. É perceptível que sofrem com a falta; contudo, a distração e o mecanismo defensivo da fantasia e mesmo da amnésia infantil operam para manter nesses pequenos os sonhos e a própria sanidade.

Aurora se encontra no abrigo desde os cinco meses, quando seus cuidadores perderam a guarda por violência doméstica e drogadição. Em quatro anos, não foram encontrados outros parentais para que pudesse ser acolhida no gueto familiar. 

E entristece saber que, afora as questões burocráticas que atrasam muito o processo no Brasil, a dificuldade em encontrar um lar e família esbarra na idealização psíquica de quem se propõe adotar – dentre outras, expectativas sobre a faixa etária (bebês são mais desejados) e características físicas (menos apelo por portadores de necessidades especiais) – sem entrar no mérito da ciranda de preconceitos que circundam nossa sociedade e da seletividade por crianças sem irmãos. 

No caso específico da menina Aurora, sua permanência no abrigo em muito se dá em virtude da não aceitação, por parte de quem a avista na visitação, de suas lesões cutâneas, especialmente a mancha bastante expressiva desenhada pelo vitiligo em seu rosto.

Considerada uma doença autoimune desenvolvida pelo sistema de defesa da própria pessoa e contra ela mesma, o vitiligo pode ser extremamente desfigurativo, causando imensos danos à autoestima e suscitando severas dificuldades quanto à socialização e construção identitária.

Em sua progressiva e esbranquiçada lesão facial, Aurora emite simbolicamente respostas nas lesões sem palavras. Ela expõe em si mesma um gozo específico, um dizer sobre o que sequer possa ser dito: frases e gritos silenciosos que romperam um dique interno para não mais silenciarem. 

Conjecturo que em seu brincar, firmado no intento em destravar o pequeno objeto trancado em si mesmo, a pequena menina alcança um tédio capaz de criar caminhos possíveis à sua analfabeta dor. 

E, assim, ela se faz luz nesse chão solitário; e irradia, num alvorecer grafado nas linhas da própria pele, a aurora que poucos são capazes de ver.

Para não desencantar do sujeito em humanidade, são esses poucos – que ela também espera que existam – que me suscitam esperança na adoção.

Última atualização
8/8/2024 15:11
Marta Moneo
Pós-graduada em A Psicanálise do Século XXI, pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap); Pós-graduada em psicanálise, pela Faculdade Álvares de Azevedo (Faatesp); Formação em psicanálise, pelo Centro de Formação em Psicanálise Clínica Illumen, com sede em São Paulo desde 2010. Outras formações acadêmicas: graduação em administração de empresas, pela Faculdade Ibero-Americana; graduação em letras, pelo Instituto Municipal de Ensino Superior (Imes) Catanduva; Leciona psicanálise, atua como analista didática e supervisora na preparação psicanalítica de alunos do Illumen. Atua na clínica psicanalítica desde 2017, com maior direcionamento ao público infanto-juvenil e adolescente.

Brasil bate recorde na geração de energia eólica em novembro de 2024

Brasil bate recorde na geração de energia eólica em novembro de 2024

Redação Cidade Capital
10/12/2024 10:21

O Brasil atingiu dois recordes consecutivos na geração de energia eólica em novembro deste ano. No dia 3, a produção média horária alcançou 23.699 megawatts médios (MWmed). Já no dia 4, foi registrado o maior volume diário, com 18.976 MWmed. Os dados foram divulgados nesta segunda-feira (9) pelo Ministério de Minas e Energia (MME).

Conforme a pasta, "os resultados destacam o avanço da energia eólica como uma fonte essencial para a matriz energética do país", confirmando o papel dessa tecnologia no fornecimento sustentável de energia.

Filme ‘Ainda estou aqui’ recebe indicação ao Globo de Ouro

Filme ‘Ainda estou aqui’ recebe indicação ao Globo de Ouro

Redação Cidade Capital
10/12/2024 10:02

O filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, foi indicado ao prêmio Globo de Ouro na categoria de melhor filme de língua estrangeira. A atriz Fernanda Torres também foi indicada a melhor atriz junto com Tilda Swinton, Kate Winslet, Angelina Jolie e Nicole Kidman

Ainda Estou Aqui narra a trajetória da família Paiva — a mãe, Eunice, e os cinco filhos — após o desaparecimento do deputado Rubens Paiva, preso, torturado e morto pela ditadura militar brasileira. 

Opinião

A solidão do abrigo e a difícil jornada da adoção

O mundo da fantasia trilha caminhos possíveis para as crianças lidarem com sua dor.O mundo da fantasia trilha caminhos possíveis para as crianças lidarem com sua dor.
Bianca Stella
/
Adobe Firefly
Marta Moneo
Pós-graduada em A Psicanálise do Século XXI, pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap); Pós-graduada em psicanálise, pela Faculdade Álvares de Azevedo (Faatesp); Formação em psicanálise, pelo Centro de Formação em Psicanálise Clínica Illumen, com sede em São Paulo desde 2010. Outras formações acadêmicas: graduação em administração de empresas, pela Faculdade Ibero-Americana; graduação em letras, pelo Instituto Municipal de Ensino Superior (Imes) Catanduva; Leciona psicanálise, atua como analista didática e supervisora na preparação psicanalítica de alunos do Illumen. Atua na clínica psicanalítica desde 2017, com maior direcionamento ao público infanto-juvenil e adolescente.
8/8/2024 9:43
Marta Moneo

O que grita no não dito

<span class="abre-texto">Entrei na sala reservada à visitação e lá estava a pequena Aurora,</span> sentada descuidadamente em suas fantasias e bugigangas – típicas de uma infância modesta, derradeiramente solitária e desgarrada dos recursos do universo tech. 

Sem que me percebesse presente e a observá-la brincando, ali permaneceu entretida com uma espécie de baú aparentemente trancado a chave. 

Seus dedos miúdos compunham duas mãozinhas pacientes, a manobrarem o objeto em busca de alguma possibilidade de destravamento. Não sei se naquele processo distraído e ao mesmo tempo concentrado contava ela com a sorte, a persistência ou apenas buscava desenvolver a melhor estratégia. De certo mesmo, é que nada no entorno fazia frente a seu foco e desejo.

Em comum, o metafórico silêncio a nos fazer companhia. 

Esparramados ao chão, colchonetes aliviavam a dureza do piso frio e emprestavam ao ambiente um ar de neutralidade ante o que poderia inspirar mais aconchego e afetuosidade.

Eu estava ciente, contudo, de que essa sensação doía mais em mim do que na pequenina...

Ainda não tendo alcançado o circuito da subjetividade (atuante na tela mental adulta), sobreviventes infantis do abandono alegram-se com o mínimo de atenção e carinho oferecido por quem, sem se dar conta da espera e da esperança naquela visitação depositada, entra e sai dos abrigos. É perceptível que sofrem com a falta; contudo, a distração e o mecanismo defensivo da fantasia e mesmo da amnésia infantil operam para manter nesses pequenos os sonhos e a própria sanidade.

Aurora se encontra no abrigo desde os cinco meses, quando seus cuidadores perderam a guarda por violência doméstica e drogadição. Em quatro anos, não foram encontrados outros parentais para que pudesse ser acolhida no gueto familiar. 

E entristece saber que, afora as questões burocráticas que atrasam muito o processo no Brasil, a dificuldade em encontrar um lar e família esbarra na idealização psíquica de quem se propõe adotar – dentre outras, expectativas sobre a faixa etária (bebês são mais desejados) e características físicas (menos apelo por portadores de necessidades especiais) – sem entrar no mérito da ciranda de preconceitos que circundam nossa sociedade e da seletividade por crianças sem irmãos. 

No caso específico da menina Aurora, sua permanência no abrigo em muito se dá em virtude da não aceitação, por parte de quem a avista na visitação, de suas lesões cutâneas, especialmente a mancha bastante expressiva desenhada pelo vitiligo em seu rosto.

Considerada uma doença autoimune desenvolvida pelo sistema de defesa da própria pessoa e contra ela mesma, o vitiligo pode ser extremamente desfigurativo, causando imensos danos à autoestima e suscitando severas dificuldades quanto à socialização e construção identitária.

Em sua progressiva e esbranquiçada lesão facial, Aurora emite simbolicamente respostas nas lesões sem palavras. Ela expõe em si mesma um gozo específico, um dizer sobre o que sequer possa ser dito: frases e gritos silenciosos que romperam um dique interno para não mais silenciarem. 

Conjecturo que em seu brincar, firmado no intento em destravar o pequeno objeto trancado em si mesmo, a pequena menina alcança um tédio capaz de criar caminhos possíveis à sua analfabeta dor. 

E, assim, ela se faz luz nesse chão solitário; e irradia, num alvorecer grafado nas linhas da própria pele, a aurora que poucos são capazes de ver.

Para não desencantar do sujeito em humanidade, são esses poucos – que ela também espera que existam – que me suscitam esperança na adoção.

Marta Moneo
Pós-graduada em A Psicanálise do Século XXI, pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap); Pós-graduada em psicanálise, pela Faculdade Álvares de Azevedo (Faatesp); Formação em psicanálise, pelo Centro de Formação em Psicanálise Clínica Illumen, com sede em São Paulo desde 2010. Outras formações acadêmicas: graduação em administração de empresas, pela Faculdade Ibero-Americana; graduação em letras, pelo Instituto Municipal de Ensino Superior (Imes) Catanduva; Leciona psicanálise, atua como analista didática e supervisora na preparação psicanalítica de alunos do Illumen. Atua na clínica psicanalítica desde 2017, com maior direcionamento ao público infanto-juvenil e adolescente.
Última atualização
8/8/2024 15:11

Brasil bate recorde na geração de energia eólica em novembro de 2024

Redação Cidade Capital
10/12/2024 10:21

O Brasil atingiu dois recordes consecutivos na geração de energia eólica em novembro deste ano. No dia 3, a produção média horária alcançou 23.699 megawatts médios (MWmed). Já no dia 4, foi registrado o maior volume diário, com 18.976 MWmed. Os dados foram divulgados nesta segunda-feira (9) pelo Ministério de Minas e Energia (MME).

Conforme a pasta, "os resultados destacam o avanço da energia eólica como uma fonte essencial para a matriz energética do país", confirmando o papel dessa tecnologia no fornecimento sustentável de energia.

Filme ‘Ainda estou aqui’ recebe indicação ao Globo de Ouro

Redação Cidade Capital
10/12/2024 10:02

O filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, foi indicado ao prêmio Globo de Ouro na categoria de melhor filme de língua estrangeira. A atriz Fernanda Torres também foi indicada a melhor atriz junto com Tilda Swinton, Kate Winslet, Angelina Jolie e Nicole Kidman

Ainda Estou Aqui narra a trajetória da família Paiva — a mãe, Eunice, e os cinco filhos — após o desaparecimento do deputado Rubens Paiva, preso, torturado e morto pela ditadura militar brasileira.