Escrevo agora sobre o que vingou de um bate-papo informal com amigos de profissão. Na inquietude de nossos porões mentais fluem sensações que, aliadas a arquivos indeléveis, pescam no tempo sem tempo do tempo as mais remotas recordações. Dentre as tantas mencionadas em conversa sobre a seara televisiva (na ciência de que tal adjetivo leva ao mais antigo de mim), uma insistiu em rodear e pernoitar no pensamento, presentificando no lobo (a)temporal que me habita, e na plenitude do duplo sentido, muitas veredas... umas delas, a da faceta da ingenuidade.
Recorrendo à etimologia, descubro que “ingenuidade” nasce do latim “ingenuitas” e expressa a falta de malícia ou astúcia. Também se associa à pureza de espírito e ausência de segundas intenções.
Em 1999, quando meu filho aproveitava a telinha das antigas, assistia com ele a um desenho bastante intrigante. A bem da verdade ele não me agradava e, antes disso, causava bastante incômodo. Falo daquele cão covarde chamado Coragem, animal de estimação de um casal idoso atípico (Eustácio e Muriel), moradores de um rancho perdido no cafundó-do-judas, num território fictício chamado Lugar Nenhum.
Embora direcionado ao público infanto-juvenil, a animação abordava conteúdos bem polêmicos, como maus-tratos, ciúmes, alienígenas, agressividade doméstica, criaturas bizarras e machismo. Coragem temia os monstros que construía em sua mente, lidando com essa pressão interna de modo delirante.
Novamente no encalço etimológico por conta da relembrança do desenho, detecto que, em latim, “coragem” vem de “coraticum (cor + -atĭcum)” e equivale a agir com o coração. Na antonímia buscada, “covardia” deriva do termo “covarde”, do latim ‘coda” (passando pelo francês antigo “couard”), significando cauda, rabo – assim, “covardia” traduz a atitude de aquele que sai com o rabo entre as pernas, que adota de maneira angustiante um comportamento/posicionamento de temor e fuga (senão de paralisia atitudinal) ante experiências que resultem na sensação de impotência e de emoções desorganizadas e irrefreáveis.
Parti a buscar dados sobre o porquê de o cão rosa se descompensar diante de tudo e descobri que, ainda filhote, estava em fuga quando encontrado e adotado por Muriel. Teria fugido após ver os pais serem raptados e enviados ao espaço como cobaias por um veterinário do mal, o que poderia explicar as repetitivas reações desesperadas e fugidias do personagem ante o que se configurava ameaçador. Seus pesadelos refletiam o medo de falhar e não ser amado pelos cuidadores adotantes.
Quando qualificamos os pequeninos de qualquer espécie, aqueles que iniciam passos espontâneos e libertos pela trilha da vida, atribuímos-lhes características pertinentes à ingenuidade, como: inocência, inexperiência, credulidade extrema, não saber. E quando expostos à realidade e à civilização, o que causa mal-estar e desequilíbrio interno faz com que a crença neles imputada (fé/confiança cega), bem como a ignorância inata (ausência de conhecimento), enverede cada qual por transformações necessárias, porém desafiadoras. Alguns lidam melhor que outros.
Especificamente em nossa família humana, os pequenos, para se tornarem sujeitos, assujeitam-se a experiências em que desarmonias e frustrações infantis levam à constituição de traumas. Em nuances do fantasioso ou da realidade, em modal suave ou estrondoso, traumas sempre hão de ocorrer, levando a criança a fundar um tanque pernicioso, todavia alentador e socialmente fundamental.
A esse poço obscuro e sem fundo, lançadas serão as emoções desagradáveis ou vivências as quais a criança não pode suportar sem enlouquecer – e esse processo continuará até o fim da vida dela. Para o bem de uma saúde mental mínima, tais conteúdos (denominados recalques) vão a esse lugar inespecífico e atemporal mergulhados no simbólico, onde se ocultam e aguardam. Lá, mantêm-se vivos, ativos, atualizáveis, automodelando-se em novas formações ou produções imprevisíveis do inconsciente... esperando por descuidos e chances de virem à tona, à margem do estado de percepção, lucidez e discernimento.
Já a sagacidade surge a partir de qualquer experiência em que o erro, a angústia e o desagradável se realizem no espírito, alavancando aprendizados (memórias consolidadas) capazes de auxiliar à não repetição e à prevenção. Ela se opõe à ingenuidade, palavra – repito aqui – associada à pureza de alma e à ausência de malícia/astúcia/inteligência. O desenvolvimento da sagacidade impele o ser nesse enveredar por entre as facetas da ingenuidade, no enfrentamento ainda que temeroso da falta de entendimento e compreensão das coisas em sua relação com a vida e com o Outro; ela, a sagacidade, faz germinar as sementes do ânimo, da lucidez e do encorajamento – ressaltando que a coragem não significa ausência de medo, mas ter capacidade de agir apesar dele.
Das telas da tevê ao piso frio da clínica, destaco a fuga empreendida por seis décadas de uma paciente vítima de abuso iniciado aos seis anos. À única pessoa a quem contou na ocasião, a avó paterna, recebeu dela a seguinte orientação sob a forma de mando: “Não conte a ninguém. Você é um anjo! Se contar, as pessoas irão ver você como demônio. Fique quietinha!”. E, sim, em silêncio e paralisia ela atendeu sem entender; em seu ingênuo obedecer, deixou-se sair daquele difícil pedido de socorro literalmente com o rabo entre as pernas e o coração em pedaços. Da omissão parental, restou apenas a triste aprendizagem da submissão.
Ela ainda hoje segue tropeçando nas pedras da Covardia em que se deixou ficar ao longo da vida. Trava grande batalha contra o ‘não’ que teve de afogar dentro de si – preservando intacta com isso a ação recorrente de seu algoz (‘amigo’ da família) nos sucessivos abusos ocorridos até os 9 anos. Opera para desconstruir a noção de que precisa ser legal, perfeita, prestativa, dócil e aguentar calada para afugentar a ideia de ser comparada ao satânico. Na delicada distância entre a coragem e a covardia, ela já não foge e isso é muito! A sagacidade ensaia seus passos na trilha de não mais permitir o que se impõe como desejo alheio. E seus passos vão deixando para trás aquele lugar nenhum onde teve de se encolher para existir.
Voltando ao Cão covarde, descobri que a série teve seu fim por conta do lastro na violência extremada. No último episódio de Coragem, o cão covarde, o pequeno animal vai à lua e reencontra os pais, libertando-os e se libertando da maldade. Parece que aprendeu a se valorizar e ficar em paz, mesmo diante das grosserias do pai adotivo, dos sustos que este teimava em lhe dar. Creio ter conseguido acolher a si mesmo e se perdoar por haver emudecido em sua aflição.
Coragem, o cão covarde, enfim abraçou seu medo e o transformou em energia para escolhas corajosas, terminando por se fazer feliz. E aqui reside certamente a grande esperança da clínica!
Nesta segunda-feira (2), celebra-se os 135 anos do nascimento de Anita Malfatti, importante artista do modernismo brasileiro.
Nascida em São Paulo, em 1889, fez na cidade sua primeira exposição individual, em 1914, mas ganhou projeção 3 anos depois, após uma crítica negativa feita pelo escritor Monteiro Lobato. O talento e a fama da artista foram consolidados no cenário artístico nacional por sua participação na Semana de Arte Moderna, em 1922.
Cerca de 10,7 milhões de brasileiros possuem algum grau de deficiência auditiva, segundo o estudo realizado pelo Instituto Locomotiva, em parceria com a Semana da Acessibilidade Surda. A condição é classificada conforme a incapacidade de detectar certos níveis de decibéis, sendo considerada surdez quando há perda profunda ou total da audição.
Esta terça-feira (3) marca o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1992 para promover os direitos e a inclusão desse público. Em entrevista, diversas pessoas relataram desafios diários, apresentando a importância de iniciativas que garantam inserção e permanência no mercado de trabalho.
Escrevo agora sobre o que vingou de um bate-papo informal com amigos de profissão. Na inquietude de nossos porões mentais fluem sensações que, aliadas a arquivos indeléveis, pescam no tempo sem tempo do tempo as mais remotas recordações. Dentre as tantas mencionadas em conversa sobre a seara televisiva (na ciência de que tal adjetivo leva ao mais antigo de mim), uma insistiu em rodear e pernoitar no pensamento, presentificando no lobo (a)temporal que me habita, e na plenitude do duplo sentido, muitas veredas... umas delas, a da faceta da ingenuidade.
Recorrendo à etimologia, descubro que “ingenuidade” nasce do latim “ingenuitas” e expressa a falta de malícia ou astúcia. Também se associa à pureza de espírito e ausência de segundas intenções.
Em 1999, quando meu filho aproveitava a telinha das antigas, assistia com ele a um desenho bastante intrigante. A bem da verdade ele não me agradava e, antes disso, causava bastante incômodo. Falo daquele cão covarde chamado Coragem, animal de estimação de um casal idoso atípico (Eustácio e Muriel), moradores de um rancho perdido no cafundó-do-judas, num território fictício chamado Lugar Nenhum.
Embora direcionado ao público infanto-juvenil, a animação abordava conteúdos bem polêmicos, como maus-tratos, ciúmes, alienígenas, agressividade doméstica, criaturas bizarras e machismo. Coragem temia os monstros que construía em sua mente, lidando com essa pressão interna de modo delirante.
Novamente no encalço etimológico por conta da relembrança do desenho, detecto que, em latim, “coragem” vem de “coraticum (cor + -atĭcum)” e equivale a agir com o coração. Na antonímia buscada, “covardia” deriva do termo “covarde”, do latim ‘coda” (passando pelo francês antigo “couard”), significando cauda, rabo – assim, “covardia” traduz a atitude de aquele que sai com o rabo entre as pernas, que adota de maneira angustiante um comportamento/posicionamento de temor e fuga (senão de paralisia atitudinal) ante experiências que resultem na sensação de impotência e de emoções desorganizadas e irrefreáveis.
Parti a buscar dados sobre o porquê de o cão rosa se descompensar diante de tudo e descobri que, ainda filhote, estava em fuga quando encontrado e adotado por Muriel. Teria fugido após ver os pais serem raptados e enviados ao espaço como cobaias por um veterinário do mal, o que poderia explicar as repetitivas reações desesperadas e fugidias do personagem ante o que se configurava ameaçador. Seus pesadelos refletiam o medo de falhar e não ser amado pelos cuidadores adotantes.
Quando qualificamos os pequeninos de qualquer espécie, aqueles que iniciam passos espontâneos e libertos pela trilha da vida, atribuímos-lhes características pertinentes à ingenuidade, como: inocência, inexperiência, credulidade extrema, não saber. E quando expostos à realidade e à civilização, o que causa mal-estar e desequilíbrio interno faz com que a crença neles imputada (fé/confiança cega), bem como a ignorância inata (ausência de conhecimento), enverede cada qual por transformações necessárias, porém desafiadoras. Alguns lidam melhor que outros.
Especificamente em nossa família humana, os pequenos, para se tornarem sujeitos, assujeitam-se a experiências em que desarmonias e frustrações infantis levam à constituição de traumas. Em nuances do fantasioso ou da realidade, em modal suave ou estrondoso, traumas sempre hão de ocorrer, levando a criança a fundar um tanque pernicioso, todavia alentador e socialmente fundamental.
A esse poço obscuro e sem fundo, lançadas serão as emoções desagradáveis ou vivências as quais a criança não pode suportar sem enlouquecer – e esse processo continuará até o fim da vida dela. Para o bem de uma saúde mental mínima, tais conteúdos (denominados recalques) vão a esse lugar inespecífico e atemporal mergulhados no simbólico, onde se ocultam e aguardam. Lá, mantêm-se vivos, ativos, atualizáveis, automodelando-se em novas formações ou produções imprevisíveis do inconsciente... esperando por descuidos e chances de virem à tona, à margem do estado de percepção, lucidez e discernimento.
Já a sagacidade surge a partir de qualquer experiência em que o erro, a angústia e o desagradável se realizem no espírito, alavancando aprendizados (memórias consolidadas) capazes de auxiliar à não repetição e à prevenção. Ela se opõe à ingenuidade, palavra – repito aqui – associada à pureza de alma e à ausência de malícia/astúcia/inteligência. O desenvolvimento da sagacidade impele o ser nesse enveredar por entre as facetas da ingenuidade, no enfrentamento ainda que temeroso da falta de entendimento e compreensão das coisas em sua relação com a vida e com o Outro; ela, a sagacidade, faz germinar as sementes do ânimo, da lucidez e do encorajamento – ressaltando que a coragem não significa ausência de medo, mas ter capacidade de agir apesar dele.
Das telas da tevê ao piso frio da clínica, destaco a fuga empreendida por seis décadas de uma paciente vítima de abuso iniciado aos seis anos. À única pessoa a quem contou na ocasião, a avó paterna, recebeu dela a seguinte orientação sob a forma de mando: “Não conte a ninguém. Você é um anjo! Se contar, as pessoas irão ver você como demônio. Fique quietinha!”. E, sim, em silêncio e paralisia ela atendeu sem entender; em seu ingênuo obedecer, deixou-se sair daquele difícil pedido de socorro literalmente com o rabo entre as pernas e o coração em pedaços. Da omissão parental, restou apenas a triste aprendizagem da submissão.
Ela ainda hoje segue tropeçando nas pedras da Covardia em que se deixou ficar ao longo da vida. Trava grande batalha contra o ‘não’ que teve de afogar dentro de si – preservando intacta com isso a ação recorrente de seu algoz (‘amigo’ da família) nos sucessivos abusos ocorridos até os 9 anos. Opera para desconstruir a noção de que precisa ser legal, perfeita, prestativa, dócil e aguentar calada para afugentar a ideia de ser comparada ao satânico. Na delicada distância entre a coragem e a covardia, ela já não foge e isso é muito! A sagacidade ensaia seus passos na trilha de não mais permitir o que se impõe como desejo alheio. E seus passos vão deixando para trás aquele lugar nenhum onde teve de se encolher para existir.
Voltando ao Cão covarde, descobri que a série teve seu fim por conta do lastro na violência extremada. No último episódio de Coragem, o cão covarde, o pequeno animal vai à lua e reencontra os pais, libertando-os e se libertando da maldade. Parece que aprendeu a se valorizar e ficar em paz, mesmo diante das grosserias do pai adotivo, dos sustos que este teimava em lhe dar. Creio ter conseguido acolher a si mesmo e se perdoar por haver emudecido em sua aflição.
Coragem, o cão covarde, enfim abraçou seu medo e o transformou em energia para escolhas corajosas, terminando por se fazer feliz. E aqui reside certamente a grande esperança da clínica!
Nesta segunda-feira (2), celebra-se os 135 anos do nascimento de Anita Malfatti, importante artista do modernismo brasileiro.
Nascida em São Paulo, em 1889, fez na cidade sua primeira exposição individual, em 1914, mas ganhou projeção 3 anos depois, após uma crítica negativa feita pelo escritor Monteiro Lobato. O talento e a fama da artista foram consolidados no cenário artístico nacional por sua participação na Semana de Arte Moderna, em 1922.
Cerca de 10,7 milhões de brasileiros possuem algum grau de deficiência auditiva, segundo o estudo realizado pelo Instituto Locomotiva, em parceria com a Semana da Acessibilidade Surda. A condição é classificada conforme a incapacidade de detectar certos níveis de decibéis, sendo considerada surdez quando há perda profunda ou total da audição.
Esta terça-feira (3) marca o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1992 para promover os direitos e a inclusão desse público. Em entrevista, diversas pessoas relataram desafios diários, apresentando a importância de iniciativas que garantam inserção e permanência no mercado de trabalho.